Samuel Úria


Encontrei-o por acaso, num concerto de bolso. E hoje descobri que estou entre os seus principais ouvintes no last.fm. Refiro-me a Samuel Úria, que considero óptimo entertainer, pelas oportunidades que tive de assistir a performances live.


Natural de Tondela, hoje com 30 anos e professor “nómada” de Educação Visual, estabeleceu-se desta vez por Lisboa por força do lançamento de “Nem Lhe Tocava”.


Mas Samuel Úria não é novo nestas andanças da música. Em 2003 iniciou-se com "O Caminho Ferroviário Estreito", editado pela baptista FlorCaveira e reunia 15 canções gravadas por si mesmo, acabando por passar 5 anos indiferente ao público. Em 2008, com um público mais vasto, editou o EP "Em Bruto", composto por 5 temas – destaque para Barbarella e Barba Rala –, actualmente esgotado. Agora, após sucessivos atrasos, o cantor lança "Nem Lhe Tocava" (2009), um primeiro disco sério, em parceria com a Valentim de Carvalho.

Nos seis anos que separam os álbuns, a música de Samuel Úria mudou. “É um disco, por um lado, mais comercial, mas por outro, menos comercial”, considera o cantautor. “Hoje em dia, se fores um gajo mais ou menos marginal, como eu sou, e não fizeres musica estritamente alternativa, corres o risco de vender menos”.


Para além disto, o seu futuro é uma incógnita. “Chegámos a um certo patamar sem saber como lá fomos parar. Não sei o que vai acontecer no futuro, podemos ser surpreendidos e podemos não o ser. Não sei.”


Não resisti a publicar a deliciosa descrição de Jacinto Lucas Pires sobre o trabalho do cantautor.



Samuel sobre os abismos


Se António fundia Braga e Nova Iorque, Samuel atravessa Dylan e Paião, Vitorino e Waits. Se Variações soube pôr mundo no Minho, Úria põe este mundo no outro, e o outro neste, e tudo em breves canções orelhudas. Mas, por favor, nada de mal-entendidos. Este artista é de sínteses, não é sintético. Isto é música muito humana, de carne e osso, verdadeira e impura, cordas, respirações, arranhões, falsetes. Um cantautor a sério a brincar com o seu tesouro. O quê, nomes, História? Bem, vamos a isso: Zeca Afonso, António Variações, Sérgio Godinho e – Samuel Úria. Sim, isso mesmo. E não, não é nenhum “por exemplo”.


Esta música não tem medo de atacar o clichê mesmo no meiinho, naquele ponto onde ele é mais sensível. Vira-o, desvira-o, reinventa-o de tal maneira que, quando damos por nós, estamos a olhar-nos ao espelho destes monumentos disfarçados de coisa respigada. Para os alternativos, fica o aviso: não se assustem com o aparato de produção, não há aqui nenhum “compromisso”, nenhuma “cedência”. Pelo contrário, este “Nem Lhe Tocava” (que título do caraças, meu) é objecto perigoso, perigosíssimo. E, para os convencionais, só um recado: ouçam sem preconceitos, sem pressas, com a calma possível, no meio do mundo, e depois vejam que tal. Em verdade vos digo, Samuel Úria é tão bom que devia ser proibido. Ele compõe, escreve, toca, canta, teatra, arranja, dispara mais rápido que qualquer sombra, faz tanto e tudo bem. Mais que bem, brilhantemente, incrivelmente, genialmente, despretensiosamente. Mas, pois, não me puxem pelo advérbio.


Podia falar de “Não arrastes o meu caixão” – quando primeiro a ouvi, arrisquei que era um fado-spaghetti, agora não sei se não será mais um western-sarrabulho – ou de “Rua da Fonte Nova, 171” – um ar-de-blues ao mesmo tempo comovente e contido – ou de “Teimoso” – sucesso pop em falsete fabuloso que põe Beck e PREC na mesma faixa –, mas, num disco destes, é demasiado difícil escolher só uma canção, só duas, só três. À volta de “Nem lhe tocava” devia haver uma fita vermelha com o aviso: aqui há mesmo 12 canções.


Não, para falar desta grandeza, temos de nos socorrer dos clássicos, não há hipótese. Samuel Úria diz-se “músico ligeiro”, mas o facto é que estas canções conseguem, e citemos Drummond, “erguer-se em arco sobre os abismos”.

Jacinto Lucas Pires


Sem comentários: